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Há um abismo que separa o bem e o mal – e a literatura, mais do que qualquer teoria, é capaz de nos mostrá-lo!

Quando o economista Austríaco von Mises escreveu que “ideias, somente ideias, podem iluminar a escuridão”, ele colocou para seus leitores uma percepção tão bonita quanto traiçoeira. É verdade que muitas das maiores barbaridades que o mundo já enfrentou foram frutos de ideias perversas – o holocausto vem rapidamente à mente. Pode parecer certeiro, portanto, dizer que boas ideias têm o poder de tirar a nuvem de todas as opiniões, juízos, entendimentos e convicções tortas que são disseminadas nesse mundo. Mesmo boas ideias, entretanto, são capazes de nos colocar algumas armadilhas.

Um pensador é capaz de impactar positivamente o seu entorno com teorias e princípios bem desenvolvidos. Qualquer pessoa também pode se guiar por ideias testadas pelo tempo, questionadas e revisitadas por inúmeros indivíduos, e ainda assim bem conservadas em função de sua robustez. Valiosas, sem dúvida, essas ideias nunca deixarão de ser ideias. Concepções não deixarão de ser concepções, assim como doutrinas, valores e princípios permanecerão, para sempre, sendo apenas doutrinas, valores e princípios. Ainda que nos guiem, muitas das formulações que orientam a percepção de mundo de cada um de nós tem em si um risco considerável: elas nunca darão conta da realidade tal como ela é, em toda a sua complexidade.

Um pacifista pode ter uma sólida e profunda base para a sua doutrina de não violência e, ainda assim, ver todos os seus princípios jogados por terra diante de um ato real de violência. Isso se dá por um simples motivo: assim que saímos do mundo das concepções e caímos na realidade, temos de lidar com incertezas, imprevistos e circunstâncias inesperadas que giram muito do que acreditamos de ponta cabeça. Em tais situações, as pessoas costumam se ver diante de um dilema inconsciente: admitem para si a insuficiência de seus princípios para poder analisar uma situação tal como ela é, ou fazem um esforço mental significativo para dobrar a realidade e encaixá-la dentro de seus princípios.

Infelizmente, o que se nota muitas vezes é uma vitória do segundo caminho sobre o primeiro. Em casos como estes, ideias muitas vezes se tornam o acessório encantador utilizado para aprisionar a realidade dentro de uma abstração, muito mais do que a fonte luminosa capaz de deter a escuridão.

O caminho oferecido pela literatura

Se as generalizações e abstrações, próprias do mundo das ideias, nem sempre se conciliam com os acontecimentos do mundo real, então devemos abandonar qualquer leitura teórica ou filosófica? Sem dúvida, não. Caminho melhor, talvez, seja aliar tal estudo com aquilo que nos oferece a literatura.

Ainda que fictícias, muitas histórias emulam situações reais e variadas: um personagem cujas atitudes são moldadas por traumas, outro que vem de um seio familiar deteriorado, alguém que encontra dificuldade em perdoar por nunca ter sido perdoado na vida. Tudo isso está dentro do âmbito da literatura, onde fugimos de ideias e ideais e caímos na realidade tal como ela é, vivendo todos os dramas que a vida oferece a cada um de nós.

Assim a literatura oferece um suspiro e uma luz às ortodoxias, às ideologias e aos absolutismos morais, mostrando como a complexidade da vida gera situações inusitadas diante das quais temos poucos guias além do que diz nossa consciência.

Em tal situação, as ideias servem como apoio capaz de auxiliar e embasar a forma como enxergamos a realidade. Nunca uma subtração da realidade, e sim um apoio às nossas percepções. Assim, ideias podem desempenhar um papel relevante. Já à literatura, cabe o papel de tocar seus leitores e fazer com que se conectem com realidades variadas. Ter empatia pelo outro, ainda que isso não implique estar de acordo com suas eventuais atitudes, mostra-se uma ferramenta essencial para navegar por um mundo cada vez mais repleto de diferenças.

Obra-prima de Dostoiévski, o livro Os Irmãos Karamázov, por exemplo, é repleto de personagens marcantes e memoráveis. Aliócha é o caçula da família, um jovem simples, humilde e inocente; Dmitri, o mais velho de três irmãos, é um homem apaixonado, beberrão e emocionalmente instável; Ivan, o irmão do meio, é um homem da razão, cético e descrente da existência de Deus. Assim, estas personalidades vão se intercalando ao longo de uma trama que possui seus momentos de beleza, mas também é marcada por conflitos e violência.

A visão de heróis infalíveis e vilões fundamentalmente perversos não faz parte das obras do russo. Não se vê, em Dostoiévski, um homem puramente bom ou puramente mau, e sim um homem completo, contraditório e falho, capaz de atos de bondade, mas também vulnerável à maldade. Como poucos autores, ele nos apresenta as incontáveis nuances típicas da personalidade humana em cada um de seus personagens.

Ivan tem uma crença que move a trama: se Deus não existe, pensa ele, e a imortalidade da alma é apenas ficção, então todos os atos são moralmente permitidos. Há uma lógica por trás do argumento, mas também uma consequência terrível: seu pai, Fiódor, é assassinado pelo criado – e possível filho bastardo – que aprende, justamente com Ivan, que tudo é permitido se Deus de fato não existe.

Em conflito com aquilo que diz sua razão e as consequências das ideias formuladas por ela, Ivan entra em profundo delírio. Será que pode ter sido o culpado, mesmo que indiretamente, pelo assassinato do pai? Será que o crime teria acontecido se não tivesse compartilhado suas ideias sobre a amoralidade dos atos perante a inexistência de Deus?

Neste estado febril e alucinante, Ivan Karamázov se vê, de repente, sentado no sofá de sua casa conversando com um diabo que lhe diz muitas coisas – e também faz uma confissão: está com reumatismo.

– “O diabo com reumatismo?”, questiona Ivan! Que absurdo seria esse?

Ora, e por que não, “se às vezes encarno”, responde o diabo. “Encarno, e então assumo as consequências”. “Satanás sou”, diz por fim, “e nada do que é humano me é estranho”.

Frase poderosa que permite refletir sobre nós mesmos e como nos portamos diante de outras pessoas.

A fragmentação moral e a dificuldade de conciliar diferenças

Em tempos de polarização, muito já foi dito sobre a nossa dificuldade de entrar em um diálogo minimamente civilizado com outras pessoas. A própria ideia de cancelar ou sabotar quem não subscreve a uma certa doutrina ideológica é um dos reflexos mais claros das tensões políticas, morais e culturais do presente. Resultado desta situação é o frequente espetáculo de acusações, com cada grupo ideológico fazendo denúncias das mais variadas: a direita é gananciosa, a esquerda é sedenta de poder, os conservadores são moralmente inflexíveis, assim como os progressistas com seus novos valores. Assim, cada lado da discussão tem uma certeza: os outros são irresponsáveis, imorais, arbitrários, e culpados por muitos dos males do mundo.

Esse jogo de apontar dedos provavelmente não faria sentido para Dostoiévski, para quem o problema da corrupção moral, da ambição, de todas as falhas em geral não pertence a grupo algum, mas sim aos homens como um todo. Nada do que é humano é estranho ao diabo que conversa com Ivan Karamázov justamente porque ele conhece todas aquelas falhas que são comuns a todos nós.

Assim, qualquer ideia de cancelamento ao oposto é totalmente ilógica e anti-humana. Cancelar quem “pensa errado” – como se isso fosse fácil definir – só é possível a partir do entendimento de que o cancelador possui e pratica uma moral definitiva e pura, razão pela qual tem competência de eliminar da vida pública todos aqueles que incorrem em “falhas”.

Esta tensão cultural está cada vez mais presente na sociedade. Ao invés de liberdade de expressão, nos voltamos à rigidez das ortodoxias morais. Ao invés de ser plena, a liberdade passa a ser aceita apenas dentro de um restrito âmbito de valores compartilhados por um grupo.

A liberdade para criar e criticar, entretanto, é fundamental para que práticas engessadas possam ser repensadas, e também para que falhas em novas ideias e concepções possam ser descobertas.

Desconfiar dos outros, mas também de si mesmo, não faria mal no atual campo de batalha moral. Antes de abraçar aquilo que temos como certo e rejeitar tudo mais que julgamos errado, afinal, precisamos compreender o ser humano em sua totalidade – isso significa aceitar que podemos estar profundamente equivocados mesmo quando acreditamos estar absolutamente certos.

Para tanto, a humildade volta a se mostrar uma virtude fundamental. Quando se trata da posição que adotamos e dos valores que defendemos, vale sempre cultivar um certo grau de incerteza. Ao contrário do que muitos tendem a acreditar, duvidar de nós mesmos não é sinônimo de fraqueza. Sem a existência da dúvida, afinal, não haveria a possibilidade de correção, de aperfeiçoamento, e tampouco espaço para tolerar aquilo que nos difere.

Nada disso significa que precisemos ser neutros em qualquer circunstância. Defender ideias que julgamos corretas é algo louvável. Tal comportamento, entretanto, não implica apagar quem queira discordar. Antiética por natureza, essa atitude se fundamenta em profunda egolatria que cega perante a possibilidade de se estar errado. Diante de uma sociedade repleta de complexidade, mais vale uma postura humilde e uma abertura à dúvida. Isso, por si só, exclui a imposição de doutrinas ideológicas diversas, ou de ideias rígidas e reducionistas que, mesmo em nome do bem e da verdade, só tirariam risadas sarcásticas do diabo de Ivan.

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